Pages

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Caras e bocas: o bolo desandou

Análise interessante sobre essa novela, que tinha tudo para ser diferente e acabou igual a todas as outras...

Caras e boas e um bolo abatumado
Por Marcelo Spalding

Há anos que uma novela não conseguia me prender por mais de trinta minutos na frente da TV. E não foram poucas as tentativas: os tentáculos são longos e em qualquer jantar na casa da mãe ou da sogra, em qualquer festinha familiar lá está ela, plim-plim, com os choros e gritos de sempre.

Mas Caras & Bocas me pareceu diferente. Não porque a pintura seria o mote, mas porque de certa forma me cativaram os personagens, especialmente as crianças, e um bom personagem faz toda a diferença. Não estou falando do choramingo da mocinha Dafne (Flávia Alessandra), nem das maldades calculadas de Judith (Deborah Evelyn), mas ao redor do nhemnhemnhém havia a graça cáustica de Bianca (Isabelle Drummond) em contraponto ao desajeitado Felipe (Miguel Rômulo), um judeu (vivido por Sidnei Sampaio), uma menina cega (Danieli Haloten), famílias de negros e um macaco. Ou seja, todos os ingredientes para que se abordasse o preconceito racial, étnico, com os deficientes, os pobres, os velhos, de forma leve mas inteligente.

Infelizmente, porém, os ingredientes são muito melhores do que o bolo. Ou as tintas muito melhores que o quadro. A novela repete velhas fórmulas surradas e esgotadas, um maniqueísmo estúpido que associa bondade à burrice e maldade à esperteza, insiste em gracinhas repetitivas e não avança nas questões centrais. Pelo contrário, reforça estereótipos e preconceitos.

Vejamos alguns casos:

Benjamin, o judeu ortodoxo, dono de joalheria, é confrontado com as mil maravilhas do "nosso" mundo, inclusive uma estonteante mulher de cabelos vermelhos e pra lá de oferecida. Sua mãe, sentindo a tentação, arranja uma noiva ortodoxa e puritana, mas igualmente bela e loura e de olhos azuis. Benjamin fica balançado, e não se sabe o que vai acontecer. Mas importa? Já estão ali todos os estereótipos, o judeu é o careta (e rico), a mãe é a superprotetora, a noiva é uma ariana boba e a outra, esperta e sensual. Aposto que, se o público pudesse escolher, mataria a mãe.

Bianca, a princesa da novela, filha da rainha-protagonista, ganha a cena quando aparece com o inseparável Felipe, filho dos empregados da casa. Pobreza, para ela, é a treva. E repete o bordão a todo momento, com graça e ensaiada hipocrisia. Claro que de tanto repetir e vindo de uma atriz tão talentosa (ex-Emília), a ironia fica evidente, mas não há ninguém na história para dizer a ela o contrário, nem o amigo pobre jamais a deixou por isso. Parece que não há riscos em se odiar pobres e pobreza, apenas vantagens, o que está, vamos combinar, muito longe da realidade.

No núcleo pobre, aliás (não sei quem inventou essa história de núcleo nas novelas, é todo mundo rico ou pobre, ainda que pobre seja modo de falar), há outro romance interessante, do garçom Anselmo (Wagner Santisteban) com a menina cega Anita. Anselmo, com medo que Anita o rejeite, finge ser um milionário, e em diversos diálogos com a dona da pensão onde mora é humilhado não porque deveria falar a verdade e superar as barreiras, mas porque não tem condições de sustentar uma moça cega. Como assim? Quer dizer que um rapaz honesto não pode namorar uma cega apenas porque é garçom??? Provavelmente acabarão juntos, para a catarse popular, mas fico imaginando os milhares de jovens garçons, cobradores de ônibus ou lixeiros vendo a novela e pensando em seus sonhos de progredir, ter uma família, uma casa.

Ada (vivida por Amanda Azevedo), é a criança do "núcleo pobre", não por acaso negra. Uma graça de menina, desenvolta e de olhar vivo. Filha de pais trabalhadores, sonha ser dançarina e está sendo treinada pela dona da pensão, que nas horas vagas a faz ir com Anita, a cega, até a frente do restaurante ajudá-la a vender rosas. Claro que sem os pais dela saberem, afinal de contas a menina é bonitinha mas é negra, e bem pode ficar de pé vendendo rosas mesmo que em casa tenha comida, calor e afeto dos pais.

Na verdade, no bairro tem outra criança, o quase adolescente Espeto (David Lucas), sósia do Harry Potter, filho de Denis (Marcos Pasquim) e amigo do macaco. Aqui fica evidente o tipo de valores transmitidos por novelas como essa: o pai, pintor fracassado, um dia descobriu um macaco que pinta e alguém que se apaixonou pelas obras, prometendo fama e dinheiro. Com a ajuda do filho, fazem de tudo para que o macaco não seja descoberto e continue pintando. A pose do galã é de quem tem peso na consciência, mas sempre incentivado pelo filho (e criança pode tudo, não é mesmo?), mantém o plano e sabe-se onde vai dar. Também não importa: o fim justifica os meios.

E nem as mulheres, público sempre fiel das telenovelas, estão a salvo: quando não são bonitas, estão fadadas ao fracasso - Ísis (Carina Porto) -, e quando o são, devem arrumar um marido que traga mais vantagens possíveis. Aliás, é isso que faz a protagonista o tempo todo, arrumar alguém para casar a fim de herdar ações e dinheiro, e também Simone (Ingrid Guimarães), a amiga, e Milena (Sheron Menezes), a filha da empregada.

Aliás, no último capítulo que assisti antes de escrever este texto, Milena foi vítima de mais uma armadilha da malvada caricata Judith, que fez todos acreditarem que a menina roubara um anel. O dono do restaurante, sem pestanejar, chamou a menina e revistou sua bolsa. Claro que encontrou a peça lá, e todos, inclusive os garçons, acreditaram imediatamente na versão do roubo. Afinal, ela é negra, fica mais fácil associar o roubo a uma negra. E mesmo que a sinopse afirme ser ela "bonita e íntegra" e ter "orgulho de ser quem é, de seus princípios e valores", caiu facilzinho na lábia do riquinho malvado Nicholas, seu pseudonamorado, não por acaso branco (não sei por que nunca apareceu sendo cortejada por alguém mais próximo a ela, mesmo sendo realmente bonita, como se homens "comuns" não a interessassem, apenas filinhos de papai).

Enfim, é interessante observar como é difícil mudar uma visão de mundo construída há tanto tempo e com tanto cuidado pela plim-plim, onde o que impera é o consumo e as relações sociais nada mais são do que convenções e interesses de um lado, paixões descabidas e eternas de outro. Num mundo assim, os personagens são todos planos, sempre bons ou maus, sempre a favor ou contra a rainha, e a rainha é sempre linda e rica e loura. Até porque o resto, é a treva! E o que interessa, mesmo, é o horário comercial.

LinkWithin